10 de novembro de 2010

Os arquivos implacáveis do Dr. Raimundo Campos

Ilusão-alusiva à fantasia de ter sido presente em épocas longínquas.

Toda a singularidade de costumes milindrosos, da cordialidade com o humano e com a arte, faz com que repetidamente cenas de outros tempos tomem a tela do pensamento, instigando a curiosidade histórica, ou, tão somente algum desejo pelo vinho, a saia ou a sonoridade que não existem mais. São as possibilidades da permissiva era digital, com a facilidade de acesso sensorial a registros como "Os arquivos implacáveis do Dr. Raimundo Campos" que fazem com que nós, reclamões de plantão, compartilhemos da conclusão: "Mamãe, decididamente eu nasci na época errada!"



Maceió, 8 de novembro de 1971, Segunda-feira.



E era então que em 17 anos de pré-vida nada parecera tão excitante quanto os entoados ruídos saindo do rádio. Eram tempos outros, e pré-viventes como nós não poderiam assentar numa das luxuosas cadeiras da confortável residência do Dr. Campos. Sendo, contudo realista, nem se já fôssemos nascidos. Acontece que naquela época vivíamos num quarto paralelo a todos os acontecimentos. Tão acerca da vida, que só hoje, alguns apenas, ainda lembram-se de poucos fatos. As recordações vêm em micro déjà vus quando toca uma canção ou se ouve uma palavra qualquer.
Tinha 17 anos e disso me lembro bem, não sei da razão. Na arquibancada montada eu podia ver perfeitamente dentro da casa. Chegaram alguns médicos e três solteironas, o que Bastou para que Dona Anita, mulher do Dr. Raimundo Campos, torcesse a cara de imediato. O time era bem treinado nas boas impressões. Especialistas da dissimulação, provocavam-se e aceitavam-se mutuamente. Era incrível aquela atmosfera me encantar.
Uns subordinados arrumavam equipamentos de rádio, microfones e alguns fios. Um lugar especial da sala chamava a atenção pela cuidadosa arrumação. Cauby cantaria ali.

A noite cresceu com um carro preto parando na escadaria barroca de frente à imponente porta de entrada. Cauby desceu com seu sorriso interno arrebatador, os olhos inflamados, como sempre luzindo encanto a todos os lados. Entrou na mansão de porcelana com seu andar real, a postura impecável. Seria o melhor não fosse Nelson Gonçalves. Mas Nelson não tinha e nunca viria a ter a pompa de Peixoto. O Boêmio era um desapego só, e não recebia muitos convites esplendorosos. Perambulava pelas ruas da Lapa, pelos botecos acompanhando outros errantes. Cantava canções indecorosas às vezes despertando algum assombro aos mais regrados. Certa vez ouvi que Nelson estava cantando num palco na inauguração das lojas Riachuelo e imaginei aquele corpo franzino no paletó surrado, que quando cantava todos se absurdavam. Mas Cauby era a voz dos presidentes, o sonho das primeiras damas. Colocou-se em seu canto bordado e foi logo anunciado. Ouvíamos tudo pelo rádio enquanto assistíamos às bocas com algum atraso correspondendo aos sons por detrás das janelas. Meus ouvidos pareciam um tanto mimados por tanta paixão, eram arrepios finos disfarçados no cruzar de braços, na contorcida admiração.

Tudo acabou bem rapidamente. As senhoras agradeceram e logo o casarão se esvaziaria de tanta luz. Cauby cantou uma última canção.




Transcrito do gravado nos implacáveis arquivos:

Dr. Raimundo Campos: -"Amigos, Fechando com chave de ouro esta audição especial do famoso cantor Cauby Peixoto, especialmente para os arquivos implacáveis do Dr. Raimundo Campos, vamos ouvi-lo cantando, de taiguara, “Coisas”
com vocês, Cauby Peixoto!"

Cauby: -"Certamente eu me despeço dos meus prezados amigos, poderia dizer, dos amigos Dr. Raimundo Campos, sua digníssima esposa, seus companheiros, seus amigos, suas crianças que são maravilhosas, esta casa que é um paraíso dentro de Maceió, Esse som maravilhoso que ele tem (espetacular). E quero pedir desculpas por não ter ensaiado muito bem as canções, queiram desculpar qualquer falha, mas a intenção foi boa e nós estamos na intimidade, na brincadeira. Tudo isso é válido.
O meu abraço e os meus agradecimentos. Eu me despeço com essa última canção":

“Coisas”


(...)

Ontem nos jornais
Eu li que o amor está morrendo
Hoje percebi
Que o mundo apenas esqueceu
Basta olhar pra si
Pra ver como eu vi
Meu amor nascer
Quando olhei pra mim
E só vi você

Um comentário:

  1. Outros tempos, não? É verdade que temos certa sorte em alguns sentidos, mas essa atmosfera toda é realmente apaixonante. Em algum lugar, Maria Bethânia conta quando chegou ao Rio, uma menina, e deslumbrou-se com uma outra Copacabana, em que os maiores nomes da música brasileira estavam sempre acessíveis ao mesmo tempo pelos diversos bares e boates. Tempo tempo tempo tempo...

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