8 de abril de 2011

Compilações para Eco.



Se essa rua



3. Chão de artista


Os humanos nascem para ficar em pé: se não o conseguirem fracassam.


Um artista nasce a meio da sua vida de homem (ou a um quarto da sua vida, ou a três quartos – como saber?) e um artista nasce para não deixar os outros homens em pé; nasce para os abalar; e abalar é fazer com que os outros não suportem estar levantados, é desequilibrar, é pôr em causa milénios de avanços musculares e ósseos, é fazer com que o contemplador não pareça bípede, que trema, que tenha medo, que se desequilibre: é fazer mexer o chão.

O artista nasce para fazer mexer o chão.

(Gonçalo M. Tavares - “Pudor excessivo e o método.”)




Andando pedrinhas sem machucar os pés.

Antes de chamar-se São Joaquim, a rua recebera chamamento de referência à fabrica de sabão que abrigava, e isso foi dona Cici quem me contou tricotando. A rua do sabão, antes de se tornar rua do Xapanã, já cortava a frente da casa avarandada num passado longe de ser lugar de ter varanda, ter frente, gente.
Recreio não conheceu meus beijos mas sentiu meus pés. Atravessando pontilhões, derrubando cercas, escalando morros de terra vermelha. Lá era toda terra vermelha; queimada ou pique-bandeira do chão dando fácil no vetor de saída-só se cresce afastando do estímulo, tropismo negativo; sem prisão gritava a vó: O leite, menina! Berrava eu pro portão: Dona Luzia, o leite! Falava o louro: Tem gente, tem gente... muito calmo.


A rua então cortava a frente e tinha o meio cravado de linha pra trem. Não sei precisar onde o trem cortou-me a vida, apesar. Os vagões enfadonhos tão móveis descompensando pisos, itineravam a palidez do relógio sussurrando ondas lentos, eram artistas de Gonçalo nascendo entre ponteiros para não deixar os homens em pé; abalando.
Chego novamente à porta para a varanda, vista doutro lado da rua de dona Cici, tronada em cadeira branca tecendo miudezas coloridas de suposta colcha ou cobertor. Muito do plano de fundo das minhas visões do mundo foi cunhado ali, ouvindo as repetições já dislexas da senhora e seus gatos, seus sapatos de couro senil. O horizonte dos fins de tarde na calçada da Dona Cici não iam nada além das janelas apostas, alimentando olhos. Desconfio que ali, nalgum lugar das reentrâncias das tranças de crochê eu me tenha brotado artista ou algo assim. Cabeçorra espessa descabelando umas impressões em meio aos julgos, vestida em cores de comer dos fantasmas do incógnito. E o que mais poderia ser? Poderia eu não chorar quando vi a música no livro didático-primeira-série. Lendo a letra que o Avô Ari cantava pra mim falando que era minha, dele pra mim, chorei. A avó Elzira mandou rezar para a alma dele, acender vela, que a lágrima era ele tentando ser lembrança em mim. Eu miúda, ainda crendo em velas, acendi uma branca; sussurrando palavras com muita força rangi as pálpebras para eficácia da fé.




(No Eco, 07/04. Foto de Thais Thomaz)


Premissa

Que fossem sérias as horas
Fizessem jus à solidão do exato

Sisudas fossem as ordens
Balanceassem a ingratidão das mãos
Desenlaçassem das algemas algum ímpeto
Trouxessem ar ao torpor e à letargia.

E que fossem sérias as analogias
Viessem nuas as más revelações do acaso
Chegassem cedo os irmãos
Zombeteando da hora marcada.

Ouvissem, vissem, tangessem o todo
A massa de humanóides perplexa
Derivando em bondes, barcas, becas e metrôs.

Que fosse sério o sangue
Esfarelando o belicoso silêncio.

Armássemos nós os nossos líderes

se toda guerra é pessoal.

Que fosse séria a promessa
Vivesse eu
mil anos
Ou meus olhos
Morrêssemos em algum transbordamento
De alguma plena emoção.

Um comentário:

  1. Gostei muito de suas compilações para o Eco, especialmente os contos, saíram ecoando em todos os poros de minha infância interiorana, trouxe todos os cheiros de casa de vó e o espetar das pedras da rua nos meus pés. Lindos textos "brejeiros" poéticos! Parabéns, Ju!

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