26 de maio de 2013

Sobre as sobras e medidas


(...) Acrescentou num tom triste.
"Pelo menos, não há mais espaço para crescer neste lugar."
(Lewis Carroll - Alice no país das maravilhas)

Natal, toda a família. As matriarcas, cada uma em sua hierarquia herdada da ordem cronológica. Os maridos sussurrando coisas de marido que não fogem às coisas dos homens.
Narro por observação das minúcias, não das importâncias, de forma que as vozes masculinas eram apenas deduções de uma leitura gestual. Imperava uma sinfonia feminina de tudo o que era audível. Os sujeitos de pernas cruzadas e costas curvas à frente do vão das cadeiras prostradas nos cantos. Do meu vestido vermelho, longo e espalhado no assoalho da sala eu as via de pé, tão maiores que qualquer coisa que já pude ver, e sonhei ser um dia maior que tudo, e nem que em um momento meramente Alice, sentir os braços atravessando as janelas e as consciências.


Minha gigante preferida, a tia forte, rebelde na juventude, que deu certo no que se diz ser certo dentro do clã. É lei que em todo natal alguém diga que eu, na verdade, pareço filha da tia, a própria. O que ninguém diz - pois por aqui não se externa o que não se sabe – é que dela tenho só o querer e gostos comuns. Em mim não existe coragem, nem sequer para parecer forte na mínima expressão disso que nela era evidente.

No fato do ‘tudo acaba’ acabou o jantar, mas a comida não. - É contraditório, que quase apago o ‘tudo acaba’, melhor, quase enfio um ‘quase’ medroso no meio. Começam a incomodar as panelas não vazias no final da mesa. É ruim quando o incômodo inquieta, fica evidente minha necessidade de pragmatizar tudo quanto é constância da vida, como se não fossem elas, já essencialmente pragmatizadas. - O vermelho do vestido foi substituído pela malha branca dum pijama de temática infantil e disposto ali num corpo corrompido, o sorvete, os palhaços e balões; derretiam, corriam ou subiam alto bem maiores que eu.

O natal cumprira seu papel. Todos se iam dormir aliviados das convenções que implica a data, quando em meio a meu próprio gozo aliviado um choro rompeu com a paz.

No quarto ao lado perguntei “o que foi”, dela eu via as costas, dobrando uma roupa e os ombros dançando uma dança arrítmica, balbuciou “nada”. Insisti na pergunta. Aliás, insisti na resposta repetindo a pergunta, “O que foi”, isso arrancou dela a base e palavras. Entre soluços convulsos confessou carência e incompreensão, requisitou demonstração atenta e carinho. Tudo num despencar de ombros, num abrir de mãos, brilhar dos olhos e contorcer da boca que molhou meus olhos. Um abraço era tudo o que havia em meus bolsos, dei a ela conseguindo achar no fundo do bolso de trás um “eu te amo” piegas e vital.
A queda tem o gosto do topo, e n’outro dia, depois de um almoço ainda cheio de arroz na panela ouvi a tia dizendo, enquanto o café entrava no copo, que ia se deitar, fez trocadilhos com o sentir da lágrima morna escorrendo no canto do olho, do jeito que só se sente após uma boa refeição, do jeito que só ela faz trocadilhos. Foi quando ela se levantou me olhando, - a mim e a xícara inclinada tomando metade do nariz - que eu pude entender. Perguntou se eu iria me deitar na cama com ela e com a avó. Era um convite despretensioso, franco, natural, dotado duma atenção que não saberia descrever. Só me via os olhos e perguntava a eles se eu desejava compartilhar o ser mulher na família. Não me esconderiam nada, falariam de tudo o que não falavam quando estávamos menores perto. Entendi daí que éramos iguais, que sempre fomos da forma mais perceptível algum tipo de árvore e fruto. Recobrar com aquele olhar e a pergunta acima da xícara, as confissões dos dois meses atrás, foi me levar à compreensão de que a coragem dela e minha fraqueza eram exatamente iguais em origem e conseqüência, sina e opção.

Duas horas depois, eu era 10 metros maior. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...