27 de maio de 2013

Teias

Domingo, dia 26 de maio de 2013, o frio e a lua-cheia abissais davam o mote às calçadas, janelas e corpos na noite juiz-forana. Desde o começo da semana presente, eu e uma porção de pessoas estávamos ansiosas com o show que aconteceria no Teatro Pró-música. Expectativa confirmada pela fila extensa formada na porta da casa; todos gulosos pela degustação da presença e som ofertados por Rafael Castro e Túlio Mourão na pré-estreia da turnê do DVD a ser lançado, “Teias”. Pois. Já assentada, eu encarava a cortina vermelha que impunha sombra ao palco enlaçando o presente que aguardávamos das mãos escondidas nas costas do teatro. Então movimento, minuto e som. Desvendados os ouvidos, uma estrada de silêncio abriu-se no espaço da plateia. À frente, dois homens trabalhavam as mãos no ofício de contar histórias e distribuir arrepios. Eram as teias prometidas envolvendo-nos ouvintes, eles e nós, num diálogo aliteral, bi e multilateral, articuladas em pares, fibras vibravam num caos de entendimento mútuo. O que dizer do cenário? A genial disposição dos pianos em cena deixa Rafael e Túlio frente-a-frente numa bela metáfora visual. Os dedos, como máquinas, unem os nervos dos dois grandes instrumentos, eles sim, corações observáveis pulsando ao leve toque dos operadores dedicados.
O repertório delicado do Teias abrange muitas minúcias históricas e estilísticas, proporcionando espaços para performances impecáveis da dupla em arranjos que evidenciam a sintonia e a generosidade entre os dois pianos. A lista de músicas não é longa, fato que vem me fascinando no contato mais constante com a música instrumental. Quando, num show de uma hora e meia de canções, precisamos elencar cerca de 18 a 20, um repertório como o aqui citado é composto por 9, 10 temas. Parece-me haver, assim, a pretensão de se extrair de cada música todo o sumo, bebendo-o e embriagando-se para que, enfim, se possa brincar nas cordas vestindo, inteiramente, os seus impossíveis tons. E o que é, pois, brincar, senão perseguir com total fé o impossível?
Destaco, portanto, quatro retratos-chave que insistem na memória. Primeiro, o momento solo do jovem senhor Túlio Mourão, levando, como menino que manuseia intimamente da pipa a linha, a simples e encantadora “Maracangalha” a alturas e divisões surpreendentes. Em seguida, recorto; Rafael Castro abraçado ao acordeão executando “Cristalino” de Túlio com o mesmo ao piano.  Tema latejante, forte e muito bonito; belo e intenso como as dores que só as mulheres são capazes de entender. Então me vem, e talvez esta seja a imagem que mais me recorra na fronte ao recobrar a noite passada, um Rafael Castro entregue ao grande coração pulsante à sua frente. O olhar à procura do outro olhar, do outro operador, do outro. E Havendo a compreensão completa do respeito a si e ao momento, emerge sabedoria anciã na escolha do jovem pianista. Em seu momento solo, mudança de roteiro. À técnica, emoção. À virtuose, coração. Rafael escolhe tocar “Sob seus olhos”, música sua, que há não muito ganhou letra de Dudu Costa. E eu, por coincidência, na terceira fila, era uma das cinco pessoas no teatro que conhecia a recém-nascida canção. A melodia, ali órfã, foi passagem carimbada para uma viagem de muitos segundos inebriados.
Fechada a cortina, o vermelho repõe luz ao que parecia sombra, e a ansiedade precoce é substituída por um encantamento geral. Saímos do teatro orgulhosos pela certeza de que algo raro fora presenciado. E daquela noite, a lua-cheia, o frio, as teias e o som permaneceriam em nós; ternos e abissais. 




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